Gino Iafrancesco Villegas – Os Quatro Regimes de Divórcio na Bíblia

7 ago

Embora a Bíblia não trate de casos específicos de divórcio, temos alguns “regimes” ou casos genéricos delineados que ajudam muito na análise das diversas situações. Muitos erros de interpretação resultam da aplicação dos textos em casos que não se enquadram no regime respectivo.

 

Regime da lei

Em primeiro lugar, devemos examinar o que a lei de Moisés dizia sobre o divórcio. O único texto da lei que trata especificamente do divórcio está em Deuteronômio 24.1-4.

“Se um homem tomar uma mulher, casar-se com ela, e esta depois deixar de lhe agradar por ter ele achado nela qualquer coisa indecente, escrever-lhe-á uma carta de divórcio, e lha dará na mão, e a despedirá da sua casa” (v.1).

O que nesse trecho se traduz por “coisa indecente” é uma palavra hebraica que aparece somente uma vez em toda a Bíblia, e aqui o tradutor a chamou de “coisa indecente”; porém, como a palavra não aparece em outro lugar, gerou-se certa confusão para o povo de Israel. O que quer dizer, exatamente, coisa indecente (ou vergonhosa em algumas traduções)? Qual é o alcance dela?

Diante disso, formaram-se várias escolas de interpretação, que foram passando de geração em geração, até chegar aos mais renomados intérpretes da lei, que foram, de um lado, Hillel (o Gamaliel de Atos 5.34 era neto de Hillel), e, do outro, Shamai. Esses dois rabinos, muito respeitados, eram os que tinham maior autoridade na interpretação da Bíblia. É importante saber que, embora todo o povo devesse ler as palavras da lei, cada um na sua casa e para sua família, havia uma orientação na própria Escritura para que, se alguém tivesse dificuldade para interpretá-la ou um caso de difícil resolução, devia ir perguntar aos sacerdotes e aos anciãos e, de acordo com sua orientação, dar a questão por resolvida (Dt 17.8-11; veja também Ag 2.11; Ml 2.7).

Não é difícil imaginar que muitos casos envolvendo separação de casais fossem levados aos rabinos e entendidos na lei. Porém lá também encontraram divergências.

A escola de Hillel era uma escola bem liberal e, basicamente, interpretava essa palavra por qualquer coisa que incomodasse ao esposo. Conseqüentemente, os que seguiam a sua interpretação permitiam o divórcio por qualquer motivo. Por outro lado, Shamai era o representante de uma escola mais restrita e interpretava essa palavra como “fornicação”; para ele nenhum outro motivo era justificado para autorizar o divórcio.

 

O Regime Ordinário

Olhando agora o Novo Testamento, encontramos as palavras de Jesus sobre o divórcio nos três evangelhos sinópticos (Mt 5.31,32; 19.3-9; Mc 10.2-12; Lc 16.18).

Os judeus queriam saber a posição de Jesus sobre o divórcio em relação às duas escolas rabínicas: ele era a favor da opinião liberal de Hillel ou da linha mais severa de Shamai?

Se tivéssemos somente a resposta de Jesus registrada nos evangelhos de Marcos e Lucas, poderíamos interpretá-la assim: “Não sou a favor nem de um nem de outro; voltem ao propósito original de Deus que não admite divórcio em hipótese alguma (o que Deus ajuntou não o separe o homem)”.

O que podemos afirmar, entretanto, é que essas passagens tratam do regime ordinário, ou seja, do casamento à luz do plano de Deus antes do pecado, e que define a norma para os casamentos no regime da Nova Aliança. De acordo com o texto em Marcos, que é mais completo, essa norma pode ser resumida da seguinte forma:

Primeiro: qualquer que repudiar a sua mulher e se casar com outra adultera;

Segundo: o que se casar com a repudiada adultera;

Terceiro: se a mulher repudiar a seu marido e se casar com outro, adultera.

A atitude do discípulo de Jesus não deve ser de buscar uma brecha, uma permissão nas Escrituras ou nas palavras de Jesus para justificar o divórcio. Devemos crer que a obra perfeita de Jesus permite que voltemos à planta original de Deus para o homem.

Além das passagens nos evangelhos, há mais dois textos no Novo Testamento que falam sobre o divórcio. Romanos 7.1-3 descreve o regime ordinário (casamento sem opção de divórcio), embora seja mais uma alegoria da vida espiritual do que uma afirmação doutrinária. Em 1 Coríntios 7, antes de falar sobre outras situações no casamento, Paulo define o padrão que Deus espera dos cristãos nos versículos 10 e 11.

 

O Regime da Exceção

Quem já estudou alguma coisa sobre divórcio no Novo Testamento sabe que no evangelho de Mateus encontra-se a famosa cláusula de exceção, que não consta na resposta de Jesus nos outros dois evangelhos. “Eu, porém, vos digo: Quem repudiar sua mulher, não sendo por causa de relações sexuais ilícitas, e casar com outra, comete adultério…” (Mt 19.9).

Deus não planejou o divórcio quando criou o casamento. Entretanto o pecado entrou e trouxe infidelidade, egoísmo e destruição para o casamento. Moisés permitiu (não ordenou, como disseram os fariseus) o divórcio por causa da dureza dos corações, dureza essa que existia mesmo entre o povo escolhido de Deus (Mt 19.8). Da mesma forma, Jesus admitiu uma exceção ao padrão perfeito e original de Deus, mas deixou claro que era uma exceção muito limitada. Com isso, possivelmente estivesse concordando com a escola rabínica de Shamai e condenando a interpretação liberal de Hillel. Quanto ao padrão normal do casamento, Jesus reafirmou o propósito original de Deus antes do pecado; quanto à possibilidade de quebra da aliança por causa do pecado, concordou com a lei de Moisés, que permitia divórcio somente no caso de impureza, mas rejeitava as interpretações distorcidas dos liberais.

Embora para Deus a aliança do casamento tenha natureza indissolúvel (“tornando-se os dois uma só carne”), Jesus reconheceu que existem atos tão sérios que chegam a quebrar a aliança. É importante, porém, tratar este assunto com muita responsabilidade e temor de Deus, pois não é qualquer situação que pode ser enquadrada no “regime da exceção”. Em toda a Bíblia, seja em relação ao divórcio no sentido literal, seja em relação ao sentido figurado de quebrar nossa aliança com Deus, esse assunto é tratado com a mais séria gravidade. Deus odeia toda e qualquer violação de aliança (Ml 2.16).

 

Regime Misto

Em 1 Coríntios 7, depois de referir-se ao regime ordinário que é sempre o ponto de referência para qualquer discussão sobre o assunto, Paulo diz: “Aos mais digo eu…” (v.12). Em outras palavras, ele vai tratar de uma situação não coberta pelo regime ordinário, um caso especial. São os casamentos mistos, entre um cônjuge convertido e um não-convertido.

Alguns cristãos achavam que não podiam manter sua aliança de casamento com o cônjuge não-cristão. Entretanto Paulo afirma que em tais casamentos mistos o cônjuge cristão nunca deve tomar a iniciativa para abandonar o casamento; pelo contrário, deve fazer tudo possível para mantê-lo a fim de “santificar” o cônjuge não-convertido e os filhos.

Se, porém, o cônjuge não-convertido resolve ir embora, o cônjuge cristão não ficará sob jugo de condenação nem sob “servidão”, pelo fato de não ter sido a causa do rompimento da aliança. Para muitos estudiosos, teríamos aqui uma segunda “exceção” na indissolubilidade do casamento. De qualquer forma, Paulo está descrevendo uma situação não prevista nas palavras de Jesus nos evangelhos.

 

Aplicação

Muitos erros são cometidos por tratarem-se todos os casos de forma igual. Se você tratar um caso de exceção somente com os versos do regime ordinário, você estará fazendo um uso equivocado dos versos onde aparece o regime ordinário, não importa em qual livro esteja escrito na Bíblia. Podemos ter todos esses versos marcados, porém não se aplicam no caso de exceção; aplicam-se a todos os demais casos onde não se requer a exceção. Do contrário, a exceção não seria a exceção.

Se você aplicar o regime ordinário onde o Senhor disse: “salvo neste caso”, então você estará passando por cima do Senhor Jesus, colocando uma carga mais pesada do que o próprio Senhor colocou. Porque o Senhor Jesus, sim, estabeleceu uma exceção que você está ignorando.

Por outro lado, é importante ressaltar que a exceção não significa que a pessoa esteja obrigada a repudiar ou a divorciar; pode perdoar. Não é uma ordem, é uma permissão, que em nada revoga o desejo prioritário e fundamental que Deus tem de preservar, sempre que possível, o casamento.

Também é importante enfatizar que a existência de uma exceção não abre as portas, como fazia o rabino Hillel, para permitir o divórcio por qualquer motivo. Existe uma exceção, sim, que não é obrigatória (pois mesmo nos casos cobertos pela exceção, o casamento ainda pode ser preservado pela graça de Deus), e é bem restrita: somente no caso de fornicação (relações sexuais ilícitas) é que um cônjuge pode repudiar o outro. Qualquer outro motivo, segundo Jesus, é causa de adultério, tanto para quem repudia como para quem casa com o repudiado.

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Resumido e adaptado pela Revista Impacto, onde foi publicado, na edição 55, em 2011.

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